CRÍTICA: "Cinderella, O musical" coroa a magia
- Julio Cezar
- 12 de mai. de 2016
- 5 min de leitura

Através de muitos e muitos anos, Cinderella, um dos contos mais famosos do mundo, se modificou e passou por inúmeros contornos, ganhando aspectos a mão livre, incrementos e roupagens em tantas camadas que muitos se esqueceram de sua raiz, muito embora a garota suja de borralho, subjugada pela madrasta e ridicularizada pelas irmãs, permaneça em sua essência. A versão que caiu no âmbito popular, e que até hoje enche os olhos de muitos, foi a retraçada e eternizada pelo icônico Walt Disney que conseguiu com êxito o feito de tornar o conto histórico por duas vezes.
Contudo, não espere ver a bela donzela perder seu sapatinho de cristal às portas da fuga do Baile Real a meia-noite em “Cinderella, O musical” que está em cartaz no Teatro Alfa, pois no libreto controverso reescrito por Beane para a encenação na Broadway, a Gata Borralheira é movida por muito mais que apenas o desejo de encontrar seu tão esperado Príncipe Encantado que lhe presenteará com um final feliz. O teor político entremeado com o fantasioso pode não ter obtido muito sucesso quando o musical estreou na Broadway, devido a concepção inabalável construída por Rodgers e Hammerstein para um especial de TV, mas que aqui certamente não causou uma comoção a nível de revolta em massa.
De espetáculo em espetáculo, Charles Möeller vem exercendo há anos um árduo trabalho de superação na direção de todos eles, sempre muito preocupado em incutir na obra realizada o desenho de seus estudos e percepções de criação, conseguindo fechar uma produção que carregue seu nome com uma visão singular e ajustada que acaba por torna-la única. Möeller por mais uma vez se afirma como um grande costureiro ao ligar todos os pontos necessários para a interligação e fluidez da história sem deixar que ela vaze por nenhuma estruturação cênica ou faça os atores se perderem dentro dela, preservando o dinamismo, a articulação do enredo e o desempenho durante as duas horas de musical. Todas as peças que compõe a cena são equilibradas clinicamente para que tenham seu tempo e valor, e não acabem tumultuadas e desnecessárias; principalmente ao unir as projeções ao trabalho final.
Os efeitos visuais não só vêm para embalar tudo o que está sendo reproduzido no palco e aprimorar a experiência dos espectadores, como também para reforçar a predominância da magia no espetáculo e complementar a linguagem dramática de cena. Möeller deixa claro no diálogo sólido que criou entre as projeções e os efeitos 3D no musical, que esses recursos que compõe o teatro modernizado podem e devem ser mais e mais explorados desde que seja sob um olhar técnico e sábio para que não acabem manchando e soando débeis e forçados.
Por detrás da cortina, a boca de cena ornamentada evoca o espírito de conto de fadas e faz remeter a um baú de histórias de onde os elementos da narrativa se projetarão. A cenografia delicada de dimensões módicas se destaca na naturalidade com que transita de um ambiente para outro sem perder a beleza plástica ou interferir na fluência da cena. A composição dos cenários retrata com precisão os traços característicos da arquitetura medieval e tem sucesso em transportar a plateia.

(Em cena, Totia Meirelles, Raquel Antunes, Giulia Nadruz e Tiago Barbosa)
A expressividade dos figurinos assinados por Carol Lobato carrega a suntuosidade contida daquele período, seja para retratar o estilo opulento de vida da realeza ou os modos parcos dos camponeses. O tato de Lobato para transmitir cada personalidade consegue fazer com que você seja capaz de identificar em qualquer peça de vestuário qual personagem a vestiria.
A impecável direção musical de Carlos Bauzys assume uma das vozes principais para criar a profundidade necessária que une todos ao espetáculo. As camadas adicionadas ao som final dão forma a uma sinfonia clássica vibrante, metalizada e brilhante, que chega claramente aos ouvidos até mesmo daquele que estiver sentado na última poltrona da sala.
Tendo em conta a preciosidade de todo este maquinário que dá vida e ajuda a alçar ao palco o maravilhoso conto de fadas, o espetáculo só vive pela alma de um grandioso elenco de profissionais que, do canto a dança, exibem o nível de excelência alcançado. Tendo os maiores timing de comédia em toda a trama, Giulia Nadruz (Gabrielle) e Raquel Antunes (Charlotte) são os nomes que se destacam ao explorar a veia cômica de suas personagens de forma agradável e sem exageros. Adicionando uma boa dose de carregado humor negro, a Madrasta de Totia Meirelles atua como um complemento delicioso a mistura. Originado na versão de Beane, o papel de o revolucionário Jean Michel, conduzido por Bruno Sigrist, é divertido e descontraído juntamente com a figura de Tiago Barbosa, como Lorde Pinkleton.
No papel de o charmoso, porém inglorioso Príncipe Topher, Bruno Narchi honra e cativa seu espaço por si só com sua leveza e característica real. Narchi desenvolve o príncipe perdido, ainda meio infantilizado e repleto de inseguranças, através de seu contexto dramático, cujo amadurecimento é concretizado em contraste à maneira segura, macia e tranquila de como canta.
Ivanna Domenyco empresta sua pele para dar vida a Marie/Fada Madrinha e se sobressai sem anunciação, impressionando a todos. Não sei se foi uma decisão da direção ou não, mas, de um modo curioso, é como se ao usarem da técnica do Belting (que produz um som mais projetado e ressonante) na voz cantada da personagem aqui, diferentemente do Legit (que compõe uma característica mais clássica e pura), que era usado em sua versão original na Broadway, despertasse certa humanidade a mais em sua personalidade. Como se a Fada Madrinha perdesse mais daquele tom angelical e praticamente intocável e aproximasse sua imagem à possibilidade de um encontro casual com qualquer um. E é dessa forma que Domenyco ganha a plateia num clímax de verdadeiro triunfo vocal.
Vivendo Cinderella, Bianca Tadini retorna ao lugar onde sempre pertenceu depois de anos. Os maneirismos repletos de exatidão, palpável leveza e a quase imanência que a atriz tem com as características da personagem, comprova que não só o sapatinho de cristal lhe encaixou perfeitamente entre todas do reino. A verdade de sua interpretação alcança enfaticamente o seu brilhoso equilíbrio vocal. Tadini parece ter saído de dentro de uma animação em que todas as expressões, do humor a clemência, são retratadas com perfeição. Em seu próprio cantinho, como canta em seu solo, ela dá ar à inspiração e desperta a fascinação infantil nos olhos das crianças, que acabam correndo para próximo do palco nos agradecimentos finais para ter o mínimo de contato possível com a icônica princesa que todas tanto sonham.
E depois de um intenso embate com os próprios infortúnios, “Cinderella, o musical” não apenas consegue por si só descer suas cortinas a cada sessão em caráter eternizado de “Felizes para sempre”, como também promover a união e realimentar a magia em seus diversos contextos dentro da mente de cada um.
SERVIÇO:
Dias: de quinta às 21h; sexta às 21h30; aos sábados às 16h e 20h; domingo às 17h.
Lugar: R. Bento Branco de Andrade Filho, 722 - Santo AmaroSão Paulo, 04757-000, Brasil
Preços: de R$ 50 a R$ 140.
Faixa etária: Livre
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