CRÍTICA: Com visão aprimorada, "Les Misérables" retorna como uma força da natureza
- Julio Cezar
- 20 de mar. de 2017
- 6 min de leitura

O homérico musical sung-through de Boublil e Schonberg que pavimentou o caminho do gênero até as massas através de alguns de seus hits mais marcantes, como “I Dreamed a Dream” e “Bring Him Home”, ganhando ainda mais projeção com a reprodução destes por concorrentes de show de talentos mundiais, destacando-se Susan Boyle e Jamie Pugh no mesmo programa britânico em 2009, retorna à cidade de São Paulo depois de um hiato de 16 anos que, na época, construiu a indústria do Teatro Musical no nosso país; sendo o responsável também por ter aberto às portas de entrada para o estilo categorizado como “réplica” ou “enlatado”.
O espetáculo chega também em solo paulistano em caráter de urgência, não só para dar a chance para a plateia jovem que pegou a admiração por musicais ao longo dos anos e também para aquela que assistiu em 2001, mas por se tratar de uma aposta segura e certa no que parece que será uma temporada de revivals de clássicos com nomes consagrados num momento em que o país passa por uma crise, já que existe um público e marketing formado.
A nova direção de Laurence Connor e James Powell deu um novo panorama para “Les Misérables”, um alivio contemporâneo, limpando os exageros dramáticos que, além de, por vezes, não chegarem com a mesma intenção e impacto até a plateia, reduzia o andamento da peça e tornava as praticamente três horas exaustivas. Essa produção que foi levada aos palcos em comemoração ao aniversário de 25 anos do espetáculo é sombria e lutuosa de uma maneira crua, humanamente dolorida, que evoca, desde a cenografia, um respeito e admiração de quase como se tratasse de um memorial, fazendo mais jus à obra da qual foi destacada e todo seu fundamento historicamente real.
Entre as revisões, o núcleo da revolução e tudo o que conduz até ela ganhou um destaque que antes chegava a ser ofuscado pelo teor melodramático muito sustentado pelos conflitos internos dos próprios personagens. Agora não mais se parece que o musical é só sobre seus protagonistas, que se integram junto ao fio da narrativa e evoluem em conjunto, sem colocar suas trajetórias a frente de tudo. Por outro lado, enquanto temos um Jean Valjean menos heroico e mais humano, cansado e sofrido, e um Javert mais ressentido e problemático do que vilão, é notável o quanto essa repaginada afetou de forma negativa Marius e Cosette. O casal, que na versão antiga representava bem firmemente a busca pelo resgate à normalidade em meio à guerra e a iminência de morte, lembrando a todos com seu amor juvenil que eram apenas “crianças”, agora parece muito deslocado e forçado quando estão juntos, como se a paixão que tentam cultivar não fizesse mais sentido e estivesse ali só para fechar um buraco, por mais verdadeiras que as atuações de seus intérpretes sejam.
O novo aspecto cenográfico desenvolvido por Matt Kinley é assustadoramente grandioso e impactante, começando pela boca cênica rústica montada com diversas tábuas sobrepostas em tom carvão remetendo as casas pobres e às barricadas, proporcionando uma imersão logo que se entra na plateia. A decisão de Kinley de se inspirar nos desenhos feitos pelo autor Victor Hugo para usar como embalagem do musical dá a nós espectadores a sensação de que estamos vivenciando algo cinematográfico. A série de projeções muito bem trabalhadas e ricas em definição que existe ao longo do espetáculo preenchem e interagem com o cenário de uma maneira dificilmente antes vista de tamanha perfeição, a ponto de se questionar, por vezes, o que é físico e o que não é.
A atuação de Daniel Diges, o espanhol escalado como o protagonista Jean Valjean, vem em explosões dosadas, em momentos certos, conduzindo a plateia por entre as linhas mais tênues do personagem, passando pelas revoltas piedosas que o expõe e parece até envergonhá-lo e o sofrimento paciente, praticamente obediente, que carrega como um fardo consigo. Sua capacidade de controle e modulação vocal seguras e a maneira como interpreta cada significado subtendido das músicas chega a direcionar as emoções do espetáculo, mas sem fazê-las só sobre si.
Diges se desenvolve bem e é mais do que pronto no que se diz respeito a dramaticidade cênica e musical, no entanto, mesmo se esforçando cada vez mais, o sotaque e a falta de articulação clara de alguns sons presentes na nossa língua ainda pairam como uma nuvem negra sobre ele, exigindo uma paciência e leve esforço de quem está assistindo para entender tudo à primeira vista. Porém o espanhol tem um ponto positivo a seu favor nesse aspecto, já que o espetáculo é todo cantado, conforme vai o ouvindo com atenção durante as primeiras horas o ouvido logo se acostuma com a forma que trabalha.

(O espanhol Daniel Diges vive Jean Valjean)
Foto: Musical Cast
Kacau Gomes, em contracena com o Valjean de Diges, encarna o papel marcante, embora passageiro, da trabalhadora Fantine, equilibrando não só na voz, que cria uma legitimidade pelas falhas sussurradas de emoção, como na atuação a desesperança expressada em seu reconhecido solo “Eu Tive um Sonho” (I Dreamed a Dream) com toda a humilhação e sofrimento materno que vem logo após.
Houve um salto absurdo no desempenho de Nando Pradho em musicais desde sua performance fria em “O Médico e o Monstro”, em 2010. O inspetor Javert travando uma luta sobre sua existência que Pradho interpreta traz um amadurecimento e empatia em cena que se conecta pontualmente com o vigor e veracidade com que canta, principalmente no episódio impactante de sua morte em que sustenta até o fim a habilidade do canto com o dramático da atuação.
Depois de viver a pequena Cosette na montagem original de 2001, Laura Lobo retorna agora no papel título de a jovem Éponine que, com o novo olhar, ocultou a tristeza por ser invisível ao seu amor. Lobo se sobressai por afirmar uma personagem com características meio tomboy, de aparência dura, devido a sua vida nas ruas e perto apenas de rapazes, e que cede a raiz dela apenas em seu clímax trágico nos braços do tão sonhado amado.
Em paralelo, interpretado por Ivan Parente e Andrezza Massei, o conhecido casal Thénardier é responsável pelo familiar alívio cômico no espetáculo. Com sua já notável veia cômica desde “Mamma Mia!”, Massei encontra seu ponto de virada e vem no que parece ser o papel de sua vida, comprovando mais uma vez, como se fosse meramente necessário, o talento inegável que possui sobre o palco; recebendo aplausos eufóricos em cena aberta por sua representação afetada, hilariante e exibida, que cativa a muitos mesmo com a natureza degradante da personagem. Embora não seja capaz de competir com sua parceira no quesito cômico, o trambiqueiro ladrão Thénardier vivido por Parente, porém, é brilhante, entregue, ao exercer a decisiva função de explicar a todos o sentido do que é ser miserável em seu contexto profundo, de mostrar a face mais deprimente e insensível de um ser humano.
Diferente de muitos musicais, em “Les Misérables” todos tem a chance de brilhar sob um holofote, se destacando em personagens passageiros e menores ou apenas em linhas solos durante as músicas. A virtuose vocal do coro, seja se atropelando como os famintos reféns da peste ou marchando rumo a batalha, é um dos potenciais de vida de toda a produção brasileira, e o que a torna tão impecavelmente expressiva. Ao som da nova orquestração sinfônica, explosiva, depois de se despedir do antigo excesso metálico, o elenco cumpre o papel de transmitir na voz o tom do musical, do triunfo da luta ao sofrimento, sempre quase de maneira miserável, como é necessário. Entre eles, Pedro Caetano no personagem de Enjolras é uma força única, praticamente absurda de tão bem que canta e lidera, assim como Filipe Bragança vivendo Marius, que se mostra uma excelente surpresa para muitos que chegaram a duvidar que teria capacidade para segurar um show tão exigente vocal e dramaticamente.
Em paráfrase ao que a crítica Susie Mackenzie disse para a produção de 1985 e que se aplica perfeitamente a esta que está no palco do Teatro Renault: “Você não é obrigado a gostar de ‘Les Misérables’. Você é obrigado a admirá-lo”, e isso independentemente do sotaque muito carregado de seu protagonista ou dos tons adotados pelos personagens e aqueles que os interpretam agora, pois, sobretudo, os valores desta obra que foi e é uma definição para o teatro musical permanecem intactos, apenas com o espírito rejuvenescido, com o frescor da época, para que prevaleça aos anos.
SERVIÇO
Sessões:
Quinta e sexta, às 21. Sábado, às 16h e 21h. Domingo, às 15h e 20h.
Endereço:
Teatro Renault, Av. Brigadeiro Luís Antônio, 411 - República, São Paulo (SP)
Preço:
de 50 a 330 reais
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