Não teve quem não se assustasse com o anúncio de que a obra mais emblemática da história, “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, ganharia os palcos brasileiros em formato de musical com músicas de Marisa Monte, e realizado pela Aventura Entretenimento, cuja menção do nome já se tornou sinônimo de medo por si só. A mínima ideia de misturar uma peça clássica, em estilo e forma, com algo popular, contemporâneo, ainda que alegando que a linguagem do amor seja universalista, não tem como não parecer absurda, principalmente se isso envolver uma das tragédias mais famosas de nossa literatura. No entanto, isso não foi o suficiente para parar Guilherme Leme Garcia, responsável pela concepção e direção do espetáculo; tampouco Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, que fizeram juntos a adaptação e roteiro.
Contudo, se não são mentes como destes três homens acima para fazer inserções do improvável, do absurdo, do inimaginável, e até do impossível (se formos nos afeiçoar mais ainda à voz de Dom Quixote), que obras como “Romeu e Julieta – Ao Som de Marisa Monte” não romperiam barreiras e fariam do insensato, algo não tão louco assim. Mas, sobretudo, é necessário que essas ideias e desejos fora dos parâmetros sejam realizados de maneira coerente, pensada, dedicada, para que deem certo, o que muitas vezes já vimos não acontecer em cima do palco; mas dessa vez eu fico aliviado em perceber que o musical não seja um desses que cairão no limbo do esquecimento.
Depois de sua passagem pelo elenco de “Rio Mais Brasil – O Nosso Musical”, Bárbara Sut foi quem arcou a tarefa de se tornar Julieta no espetáculo. A marcante protagonista habita de uma forma inteiramente completa a voz de Bárbara, através de dosagens vocais que tanto trazem o espectador para a linguagem das canções de Marisa Monte e do estilismo da MPB, quanto para a composição tão conhecida da personagem (por isso é bom destacar a magnifica direção vocal de Jules Vandystadt), que se equiparam dentro dos números musicais e fora deles sem haver uma desconexão. A atriz foi muito bem dirigida por Guilherme Leme, pois são em seus movimentos, nos maneirismos que se completam, que encontramos mais uma das almas de Julieta. Porém, ainda assim existe uma má funcionalidade na interpretação de Bárbara, que por vezes acaba por cair na região comumente chamada de “dar texto”, em determinados períodos, principalmente durante grande parte do segundo ato, que é exigido do papel um revés dramático. Através de exageros e arranques, é como se ela tentasse trazer a dor no recitativo à força, por convencimento, enquanto suas expressões faciais não acompanham, não acontecem; acabando por muitas vezes ficar mais à cargo de voz cantada e uma direção muito bem-feita.
Por outro lado, Thiago Machado, o nome mais promissor do teatro musical brasileiro, vem provando sua força como ator e cantor cada vez mais, desde seus grandes destaques como Eddie, em "Mudança de Hábito", depois Riff Raff em “Rocky Horror Show”, Ramsés em “Os Dez Mandamentos” e Roger em “Rent”. Aos poucos, o ator veio se preparando até poder se encontrar com a carga dramática necessária exigente no papel de Romeu. A sua interpretação é consistente, entregue em seus olhos, em conexão com a plateia, ainda quando não está olhando diretamente para ela, desdobrando-se com o texto de maneira fluída, carismática. A sua versatilidade vocal ainda, muito exibida em seus outros papéis, nos assegura da jovialidade, do ímpeto imprudente e da condição romântica de Romeu e como ele rapidamente se desenvolve, o que às vezes é muito difícil de ser comprada nas representações de Shakespeare.
As ligações desse par romântico durante o musical não se manteriam inteiramente de pé em seus personagens se não fosse pela contracena entre Bruno Narchi (Benvólio), que se destaca de modo absurdo ao lado de Thiago, quase como se fosse tão protagonista quanto, dando-lhe densidade e ritmo; Ícaro Silva (Mercuccio), formando a tríade, com toda a leviandade sob o leitmotif de Negro Gato, embora pequenos exageros do personagem fujam à homogeneização do elenco; e por isso Stella Maria Rodrigues (Ama), que tem o dever de ir extraindo à mão as camadas de Julieta e que, apesar de seu balanço enérgico e indispensável para a cena, também ultrapassa um pouco de seu tom.
(Kacau Gomes interpreta a Sra. Capuleto)
Talvez a problemática na concepção do texto de Gasparini e Rieche, que inclusive é um método ultrapassado e que não funciona mais na maioria dos casos em quesito de arco de enredo, principalmente quando falamos em adaptação, criação ou reestruturação de algo, é valer-se da técnica núcleo-encerramento para separar bem os atos da obra. No musical, temos um primeiro ato rico, de boa condução, repertório musical e números eletrizantes, com destaque para a grandiosa cena do Baile de Máscaras, a síntese do resultado do show, onde tanto a estética visual, dramática e musical se encontra com o virtuosismo dos gêneros musicais, como o hip hop, que fazem sentido graças a direção musical de Apollo Nove. O núcleo narrativo é focado no encontro e descobrimento do amor do casal protagonista, sem nenhuma introdução a já tão conhecida guerra entre famílias, senão o número de abertura desconexo e confuso do espetáculo que mostra uma briga de espadas entre Capuletos e Montecchios, colocada ali quase para dizer que existe e acontecerá, só que não na uma hora e pouca a seguir. Já no segundo ato, temos uma nova abertura de foco concentrado no que a união de Romeu e Julieta causará do início ao fim, da tensão, da morte e do ódio até entre os personagens secundários, os motivos que o casal não poderá ficar junto. No entanto, esses subnúcleos e seus traços não são minimamente apresentados antes e, por isso, não conseguem se desenvolver na outra hora restante do musical, resultando num ato com resoluções não tão criveis, e por vezes entediantes, superficiais. O andamento é arrastado e totalmente oposto ao inicial, com algumas músicas mal escolhidas e deslocadas.
Como um todo, vale ressaltar o trabalho analítico que ambos fizeram limpando bastante as hipérboles, aliterações e o renascentismo linguístico e outras figuras de linguagem da obra, encontrando um meio termo para tudo sem descaracterizá-la em período e estilo, para que conseguisse se encontrar com a melodia de Marisa Monte, mas ainda assim fosse Shakespeare.
A cenografia de Daniela Thomas acompanha a linguagem do musical e sua estética visual, passando longe de ameias, enormes conjuntos de peças ou objetos cênicos móveis, e é mais do que suficiente, ou melhor, complementar. A ambientação e arquitetura da época é somente retratada através de grandes blocos cinzentos que se movem pelo palco e criam os espaços, remetendo em seu peso e assimetria, a verticalização das construções no século XVI e sua opacidade, dando sim um aspecto piramidal e profundo, sem a poética apelativa, fazendo um grande elo com as várias reflexões do desenho de luz de Monique Gardenberg e Adriana Ortiz, que é o que proporciona toda a atmosfera necessária do espetáculo e o guia por cada tom.
O figurino de João Pimenta capta toda essa nova ambientação, da gravidade tradicional medieval, ainda que com recortes mais atuais, a um incerto e não tão claro futuro da moda moderna que flerta e incita uma extravagância ao expor farthingales e elmos gregos da infantaria como composição de peças de fantasia.
A coreografia de Toni Rodrigues é um dos elementos de destaque no espetáculo, lembrando muito esse traço de contemporaneidade na hora de construir um musical, que vem crescendo desde “Spring Awakening”, em 2006, que tanto impulsionou produções seguintes com sua trilha sonora em pop-rock-folk, quanto começou a inspirar o tom para esse individualismo cênico na hora de contar a história através da forma do movimento, do posicionamento corporal para gerar uma sensação de amplitude, sustentação, dar energia, do contorno e a profundidade do palco, não somente para expressar os sentimentos não ditos ou cantados dos personagens, tampouco exercer somente sua já conhecida passagem de tempo no enredo. E é o que vem se tornando cada dia mais popular e assertivo, em exemplos como “Hamilton” e “O Grande Cometa de 1812”, que utilizam dos recursos coreográficos para fazer a história literalmente ficar em pé e caminhar.
E então, apesar de alguns tropeções, “Romeu e Julieta – Ao Som de Marisa Monte” é inacreditavelmente possível, funcional, delicado, emocionante, bem feito e, principalmente, artístico, o que deveria ser a prioridade nos espetáculos produzidos pela Aventura Entretenimento. Tomara que este seja o carro-chefe implícito de uma nova fase da produtora, depois de infortúnios atrás de infortúnios.
SERVIÇO
Quando: de sexta (20h30), sábado (16h e 20h) e domingo (19h)
Onde: Teatro Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569 - Consolação, São Paulo - SP)
Ingressos: R$ 75 a R$200
Classificação: Livre