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Com um olhar, o que "Sunset Boulevard" encontra é alívio


Boa parte do público que entra na platéia do Teatro Santander, em São Paulo, pode não saber que estão prestes a assistir o roteiro de um dos filmes mais aclamados da história do cinema americano, e que se tornou também um dos papéis mais prestigiados do teatro musical desde de sua estreia na Broadway há vinte e seis anos. “Sunset Boulevard” (ou "Crepúsculo dos Deuses” aqui) começa quando o jovem roteirista em decadência Joe Gillis cruza o caminho da antiga e também autocentrada estrela do cinema mudo, Norma Desmond, que vive em sua mansão com os fantasmas e delírios de um passado que insiste em acreditar que ainda resiste. Gillis se vê seduzido pela grande atriz e sua vida de luxo, enquanto ela encontra no jovem a possibilidade de fazer seu grande retorno às telas. A trama cresce em turbulência, ilusões e jogos de interesses, tudo o que fervilha nos estúdios de Hollywood.


Sir Lloyd Webber, compositor do musical, na necessidade de manter o movimento Extravaganza iniciado por ele mesmo no Segundo Século da História do Teatro Musical Americano, em 1970, talvez tenha causado o fracasso financeiro de "Sunset Boulevard", porém, em contrapartida, conservou de alguma forma o seu prestígio. Mas tratava-se de um grande filme, contando a história de uma grande estrela, exigia, então, uma grande produção, certo? Bem, depende do ponto de vista.


Sendo assim, é o que nos leva a enxergar que, no final das contas, o exagero belíssimo, multimilionário e premiado dos cenários de Napier e a performance apoteótica de Glenn Close mudaram o conceito do musical nas montagens seguintes. Um por motivos financeiros e o outro, artístico, respectivamente. A Broadway é dura, assim como a Hollywood retratada na trama também era. Por isso, por precaução, os diretores enxugaram as produções seguintes e a fizeram inteiramente sobre sua estrela principal. Ou você tem uma dama do teatro musical, como Close, Lupone, Buckley e Moreno, ou você não tem motivos para erguer a mansão de Norma Desmond.

Porém, aqui ainda não é uma Broadway cheias de fantasmas e exigências que podem te arruinar para sempre, pelo menos não totalmente. Talvez seja por isso que a produção da IMM e EGG Entretenimento que está no palco do Teatro Santander de quinta a domingo, consegue respirar bem.


Isso pode ser visto a olhos nus no reflexo da cenografia escolhida que repete o minimalismo do revival de Loony Price em 2017 na Broadway, porém com mais engenhosidade e ousadia. O resultado da concepção de Matt Kinley é uma orquestra suspensa em estilo concerto, com um palco giratório em meio a duas ilhas que servem de ameias, tendo parte de um rolo de filme como pano de fundo onde é feito toda a projeção mapeada. O refinamento do vídeo tem uma qualidade sensorial ao se mesclar com o cenário concreto. Tudo é funcional, articulado sem ser pesado ou truncado, do ambiente caótico dos estúdios à opulência da mansão. E a escadaria emblemática está lá, surgindo e desaparecendo quando necessário, como se fosse o alter-ego de sua protagonista.



E é por isso que, apesar dos anos, ainda é meio cômico ver como até uma escadaria possui mais protagonismo do que o Joe Gillis que os libretistas Don Black e Christopher Hampton resumiram para o musical. Julio Assad, seu intérprete, o carrega seguramente nota por nota das canções numa louvável interpretação músico-dramática, com um recitativo ágil e resistente ao passar para o canto. No entanto, o seu personagem não passa de sua boca, não alcança suas expressões faciais ou postura. Então a platéia não conhece exatamente esse Joe, não sabe se ele é bom, leviano, ganancioso, acomodado, deslumbrado ou tudo isso ao mesmo tempo. Os subtons não ficam claros. Assad só o evoca na voz, através das letras, e quando consegue trazê-lo para fora com uma explosão no segundo ato, infelizmente o seu arco dramático termina.


Mas ele está ali e você até o enxerga durante o dueto com Lia Canineu, que faz incrivelmente o papel de Betty Schaefer. A atriz consegue tornar o seu pouco, tudo. Ela desenvolveu Betty do canto aos trejeitos, e você pode vê-la de longe, sentir sua presença que cresce muito, apesar dos limites impostos pelo texto.


Encarnando Max Von Mayerling, o misterioso mordomo de Desmond, Daniel Boaventura consegue desempenhar bem a onipresença e figuração do personagem. A gravidade de sua voz é obscura, porém, pelo excesso de cobertura lírica que existe, às vezes acabam acontecendo distorções do som nas terminações de frases musicais e notas, fazendo com que algumas partes do texto acabem por fugir à compreensão.


E como já é esperado nesse espetáculo, o ensemble vem num trabalho diferente do que é conhecido, servindo aqui para preencher as lacunas cênicas com dinâmica, rítmica e um virtuosismo vocal absurdo, sem perder o fôlego, mas deixando a platéia sem ar com a capacidade artística de cada um.


“Sunset Boulevard” nasceu com o intuito de ser sobre uma estrela e, com o passar dos anos, tornou-se para uma estrela. E nessa produção, sem expectativas para serem cumpridas, podemos voltar à raiz da obra. A direção é plana, sem benefícios para seja lá quem interprete Norma Desmond, brilhar sozinha. Talvez seja por isso que Marisa Orth parece tão tímida. Ela explora o mesmo núcleo de Close, com uma Norma com problemas mais psicoemocionais do que o descontrole comportamental de Glória Swanson (no filme) e Lupone (no palco). Mas Marisa não consegue trazer ainda totalmente a figura de quem foi avassalada pela fama e por sua falta de vida. No ápice de seus solos e cenas que dispõe ao público a protagonista, é o que está dentro da forma que ela atua a canção que não chega até lá, e isso não tem nada a ver com sua capacidade vocal limitada. É como se Marisa ainda estivesse se achando, se acrescentando, se ajustando ao papel para poder se entregar, por isso parece tão diferente do que costuma ser nos palcos.


Por outro lado, temos Andrezza Massei, que divide o papel com Marisa Orth. É a grande reestreia de Massei, apesar de sua carreira notória no teatro musical, é em “Sunset Boulevard” que ela se descobre como a grande atriz que é. O gigantismo de sua Norma Desmond é exemplar, não só pela forma que atinge as notas com uma pressão ambígua e retumbante, mas como se preocupou em finalmente assimilar todas as camadas da personagem em uma só, de Swanson a Close, não sei se de propósito ou por opção. O resultado é um cinismo hipnotizante na maneira como transcende a loucura sem perder a fragilidade emocional e ferocidade. Num olhar, Massei mostra o medo da personagem de se perder e se encontrar com uma amargura desesperada e impassível, sua maior antítese.


Ela ouviu o silêncio de Desmond. Então quando o holofote finalmente a encontra, igual canta em seu solo eternizado, no apogeu de sua loucura ao descer a famosa escadaria, como no último ato de "Lucia di Lammermoor", à beira do choro de emoção e insanidade, quem pode dizer que não estava perfeita?

(fotos|Marcos Mesquita/Divulgação)

SERVIÇO:


Onde: Teatro Santander (Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2041)/São Paulo.


Quando: de quinta e sexta, às 21h; sábado, às 17h e 21h; domingo, às 15h e 19h.


Quanto: de R$ 75 a R$290

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